De 20 Mai a 12 Jul 2008
Entre diversas tentativas de tornar legíveis as inúmeras transformações tecnológicas do mundo contemporâneo, observa-se, nas conformações subjetivas das experiências vividas, a dominância de uma fluidez desprovida de ritmo, entendido como duração e heterogeneidade corporais constituídas pela linguagem. De um lado, supõe-se que a profusão de objetos no mundo, inclusive aqueles considerados artísticos, vale por eventuais ineditismos, mas cuja tônica, como sempre, converge para poucos temas relevantes; de outro, mantêm-se trajetórias forjadas na lida cotidiana, em que certas escansões nos concedem pontos de orientação em face do declínio ou ausência de ideais estáveis. Salvo poucas exceções, obras de arte interessam menos pelo que agregam de inovações à história e muito mais por sua singularidade e pelos modos como nos ajudam a entender a presença do que foi realizado por outros artistas.
O jornal, periódico de folhas soltas e caráter transitório em que se publicam notícias, entrevistas, anúncios e informações úteis ao público, é presença recorrente na trajetória artística de Luciano Figueiredo. Na série Noir, realizada de 1975 a 1984, na qual se destacam Livro de sombras e Jornal imaginário, vêem-se colagens com recortes de jornal e poemas visuais compostos em letraset. Nos seis anos seguintes, os primeiros Dioramas, telas de arame em que o jornal, tornado papel machê, participa dos trabalhos como forma, volume e peso, e Relevos, feitos dessa mesma matéria colada em voile. Os anos 1990 compreendem novos Relevos, desta vez com dobras, parcial ou totalmente coloridos, e a década em que estamos, uma série diferente de Dioramas e também Muxarabiês, nos quais o jornal, embora fisicamente ausente em alguns trabalhos, permanece, de maneira vigorosa, não só nos cinzas residuais de sua realidade visual, mais claros ou escuros, como também na estrutura diagramática das pinturas, cujos planos de cor superpostos e, às vezes, delimitados por fitas adesivas se imiscuem, levando-nos a descrer do que está mais próximo ou distante de nós.
Expõem-se aqui Tercetos de dois tipos. No primeiro deles, caixas de vidro e madeira encorpam três pinturas sobre tela feitas separadamente em um mesmo formato. Reunidas, a independência de cada uma delas se converte em plano e sombra, cuja constituição tem de levar necessariamente em conta as formas e cores que lhe preexistem e que são a ignição, oxalá bem-sucedida, de uma nova obra. No segundo tipo, há, a princípio, uma folha de papel Arches de 600 g/m2, sobre a qual se imprimem ampliadas, em serigrafia, tiras extraídas de jornal, cuja função principal é funcionar como linhas. Em seguida, esse plano inicial é subdividido em três outros planos de mesmo formato, que são fixados em uma nova configuração não retangular, estruturada sobre camadas de tela. Feito isso, passam a existir linhas gráficas seccionadas e três planos tornados novamente um, sobre os quais as cores, carregadas pela transitoriedade das pinceladas, começam a se depositar, até o momento em que o já impresso se intercala ao que é pintado e dá notícias de algo que se metamorfoseou pelas mãos do artista.
A confluência de elementos discretos ? linhas, planos e cores ? e seus efeitos, que se apresentam em ambos os tipos de Tercetos, pode ser recuperada na língua cotidiana em, ao menos, quatro modos diferentes: i) do que é efêmero ? e, por extensão, transitório ? a língua permite dizer que passa como sombra, num piscar de olhos; ii) nas oficinas de jornais, terça é a última prova que se tira antes da impressão, a fim de se verificarem as emendas feitas; iii) planejar é estruturar uma obra, dando-lhe determinada disposição; e iv) entre os sentidos desse mesmo verbo, encontra-se o de esboçar, deitar as linhas, por meio das quais um intento ou desígnio pode se concretizar ou solucionar.
Nas pinturas de mesmo formato reunidas nas caixas de vidro e madeira, o caráter diáfano das pinceladas mais fluidas ensina que estas, encetadas sobre formas que as suportam ? em nosso caso, quadrados e retângulos de cor ?, identificam a passagem do tempo e, portanto, o prenúncio do que elas permitem cadenciar. Nos trabalhos sobre papel, por sua vez, os planos decompostos e rearranjados, em vez de servirem a uma operação em que a pintura tenderia a ocupar o espaço, permanecem voltados para si mesmos, exercendo uma função de reserva para os seguidos planos de cor que se superpõem a eles, sem desconsiderá-los. Nota-se, assim, uma divergência entre uma planomania, apenas suposta, e os modos pelos quais cada pintura se define. Não há o impulso de, pincéis à mão, vagar livremente e tão-somente deixar-se à entrega de devaneios, nem o de exceder o que a redefinição de planos e linhas sugere ou permite. À sobreposse, cabe ao artista manter a escuta tranquilamente atenta, analogamente suspensa, a fim de extrair das entrelinhas inter-relações de cores ? não várias e sempre saturadas, no sentido de uma estrutura com apenas um tipo de ligação ?, que deixarão ver seu ponto de suspensão, metaforizado pela perda de vigor gráfico das linhas impressas; que repassarão ao público a ocasião em que, para o artista, o perene ou imorredouro (subjetivo a cada um de nós) pode despertar do transitório, isto é, no qual a fugacidade ou impermanência condensada pelo jornal (noticiário e paga de trabalho diário) muda de estado, de condição, tornando-se algo que vale a pena manter perto de nós como prenúncio de uma vida que se renova até o fim.
Luiz Eduardo Meira de Vasconcellos