Século XX

Antonio Claudio Carvalho

De 20 Jan a 28 Fev 2004

Para Antonio Claudio Carvalho, o século XX é vermelho; a cor que Kandinsky diz dar a impressão de fortes batidas de tambor, logo após afirmar, no mesmo texto, que ouvimos a cor. Curiosamente, a instalação de pinturas Where have all the flowers gone? (Para onde foram todas as flores?) surgiu quando Antonio Claudio Carvalho ouviu a música de mesmo título, pela primeira vez, na voz de Marlene Dietrich. A canção, composta por Pete Seeger em 1956, acabou por se transformar em verdadeiro hino anti-bélico, gravado por diversos intérpretes ao longo do século. 

Para onde foram todas as flores?gerou no imaginário de Carvalho o som dos tambores kandinskyanos, contrariando o tom suave da canção original, mas penetrando em seu tema: a guerra. E foram os tambores da guerra que o levaram ao vermelho, à cor do sangue e, metaforicamente, da violência. A mesma cor que Goya fez explodir no centro da tela.O dia 2 de maio de 1808, quando o mestre espanhol ouviu o ardor do combate madrilenho pela independência, e que novamente derramaria no chão de sua composição. Os fuzilados de 3 de maio, para muitos o mais dramático quadro histórico ocidental.

Expandindo o vermelho em campo contínuo, como Matisse, mas carregando-o com a fúria de Goya, Antonio Claudio Carvalho ainda nos remete ao vermelho dos conflitos humanos e fantasmáticos que vimos no cinema de Bergman (Gritos e Sussurros) e de Kubrick (O Iluminado).

Arte, música, poesia, fotografia, vários domínios da expressão cultural têm sido citados explicitamente na pintura de Carvalho. Expondo bastante no exterior (viveu oito anos em Londres, onde ainda divide residência), o artista tem feito de sua obra um espaço de síntese de suas referências artísticas, que acabam por configurar um caleidoscópio da própria tradição moderna do Ocidente.

Trabalhando sempre figura e palavra em um amálgama pictórico, Carvalho tem se revelado, acima de tudo, um exímio colorista, respondendo a Barnett Newman que não tem medo da cor. Os extensos fundos vermelhos já podiam ser vistos em telas como Duchamp?s first wife (A primeira esposa de Duchamp), de 2000, ou em The marriage of Monalisa (O casamento de Monalisa), de 2001, assim como em Talking to Jesus (Falando com Jesus), 2001, quando faz contundente comentário sobre o 11 de setembro.

Seguindo a espontaneidade da escritura automática dos surrealistas, e revigorando o interesse pela representação infantil, que tanto atraíra Miró e Picasso, e ainda hoje é vista em trabalhos como os de Keith Haring, Donald Baechler ou Jean Michel Basquiat, a pintura de Antonio Claudio Carvalho, entretanto, possui declaradas alusões políticas, que possivelmente remontam à Pop brasileira. Parece-nos inclusive que, desde os idos 1960, não se dava aos aspectos políticos da imagem um estatuto tão grave. 

Insular dentro do percurso de sua obra, Where have all the flowers gone? constitui a primeira grande série, de doze telas de grande formato - alem de outras quarenta e quatro telas menores em cores diferentes - com unidade temática. A série persegue a economia de elementos que muitas pinturas de Carvalho já anunciavam (embora outras tantas trabalhem pelo excesso de motivos), mantém o acento na cor, e volta a dar às palavras o estatuto de signos visuais, segundo a via conceitual aberta por Magritte.

Para onde foram todas as flores? mescla pintura, palavra, música e fotografia. Ao enorme plano vermelho atmosférico, inserem-se fragmentos de fotografias das guerras que acompanharam o século. Um prisioneiro vietcong em Saigon, uma criança em campo de concentração nazista, um combatente ferido na guerra civil espanhola, o movimento estudantil do Rio de Janeiro e Paris, e várias outras imagens repetem, conjuntamente, e cada qual na sua língua, a célebre pergunta, que a música ao fundo nos faz ouvir também em diferentes versões e idiomas.

A uniformidade do vermelho, o uso do negro em todas as figuras, a mesma frase reiterada, enfim, todo o grande painel da instalação incide sobre a mesma e regular chaga que cobriu o século passado: a guerra.

Com economia e simplicidade de meios, como a própria canção-título, Antonio Claudio Carvalho fez de Where have all the flowers gone? uma bandeira do mundo vermelho que nos rodeia. Trouxe de volta ao campo da pintura um tema recalcado, mas com a inteligência de quem empresta à violência e a seu repúdio as finas formas do comentário da arte. Saturno devorou seus filhos, mas só Goya soube transformar essa cena mítica, no esplendor da sua violência, em linguagem poética. O vermelho também está nos devorando, e Antonio Claudio Carvalho, com a visualidade contemporânea e imagens que conhecemos, parece igualmente tentar delatar o horror do mundo com o escândalo da sua cor. 

(1) ? Chipp, H.B ? in Teorias da Arte Moderna (texto ?A arte concreta?, de Wassily Kandinski), Martins Fontes, São Paulo, 1996. 

Ligia Canongia