De 14 Ago a 11 Set 2004
A pintura atual de Roberto Cabot determina pontos de interseção entre o universo da máquina, com seus dispositivos controláveis, e o mundo emocional, com toda a desordem de suas pulsões, criando um espaço transversal, que participa, ambiguamente, da matemática e do caos.
A qualidade dessa pintura está no ato de estabelecer uma rede espacial imaginária, que subverte a idéia do cinetismo mecânico, apesar de trafegar por operações digitais que, por princípio, fariam supor um campo ótico mecanizado. Seu desafio, portanto, é propor um espaço em movimento, que transborda da rede programada original e desfigura a imagem em projeções inesperadas.
O trabalho não se resume a dar mobilidade mecânica às formas abstratas, nem a ironizar a grade construtiva tradicional, mas incorpora, no campo cinético, o paradoxo da imprevisibilidade. O imprevisto, porém, longe de desarticular inteiramente o caminho das linhas, como um acidente abrupto capaz de interromper seu fluxo, impõe-se como um desvio vital e motor, que recria esse fluxo em nova gravitação.
Com o campo ótico lançado em ondas de movimentos imprevisíveis, e ainda problematizado por uma duplicação espectral de sombras, o espaço da pintura se turva e extrapola o perímetro da própria imagem, deslocando-se para algum lugar entre os planos, numa topologia indefinível.
O objeto da pintura de Roberto Cabot é o próprio fenômeno da visão e, com ele, os deslizes do ilusionismo e do trompe-l?oeil. O olho engana-se quando a lógica espacial da pintura o induz a perceber o que não há, ou quando provoca incidentes visuais que perturbam as referências que acreditamos haver para nossa definição do espaço. Assim, o ilusionismo é uma brincadeira ardilosa com o olhar, remetendo-nos a uma realidade física impossível. E o trabalho de Cabot, de certa forma, é dar credibilidade a esse ardil. Utilizando-se do recurso do trompe-l?oeil, no qual o jogo do duplo e das sombras é fundamental, o artista não cria na pintura a ilusão da realidade, mas, ao contrário, dá realidade pictórica e, portanto, física a um espaço fantasmático e fluido, que se esquiva na malha temporal de um movimento contínuo.
Em trabalho desenvolvido paralelamente às pinturas, e cuja menção torna-se obrigatória, Roberto Cabot leva ao campo escultórico os mesmos princípios que o orientaram na tela, e ainda no desenho. Sua ?máquina de reflexão?, aparelho construído pelo artista com estrutura de madeira e inúmeros espelhos, apresenta-se como síntese e metáfora do próprio processo da pintura. Ali, as ?janelas? dos espelhos se abrem para fragmentar o espaço real, para recortar fatias de outros espaços, externos, e incorpora-las àquele lugar, como se a ele pertencessem. A máquina torna-se então o lugar da descontinuidade, do acidental, do imprevisto, por uma torção espectral que não apenas embaralha nossa percepção espacial, como contraria a própria definição de máquina.
Entendidos, segundo o artista, como ?um multiplicador de luz e um desdobrador de visão?, tanto o aparelho quanto as pinturas desenvolvem o campo ótico da imagem para além de seus limites, pressupondo desvios e movimentos que desmontam a ordem e a determinação da máquina, indicando contratempos que nos reportam aos percalços surpreendentes da própria vida.
Áreas cinéticas imprevisíveis, os trabalhos de Cabot dialogam de frente com os Metaesquemas de Helio Oiticica, para quem o espaço sempre foi mutável e sujeito a contínuos deslocamentos.
Oiticica queria dissecar o espaço, saturá-lo em exercícios quase matemáticos que o fizessem ir ao âmago da planaridade. Mas o conceito do plano, nos Metaesquemas, jamais excluiu a idéia da flutuação espacial, como se os recortes geométricos de cor estivessem sempre a prenunciar uma articulação física e móvel no espaço. Podíamos imaginar os Metaesquemas como uma espécie de vista aérea daquilo que depois iria se configurar como os Bilaterais e os Núcleos, já volumes de fato, suspensos no ar.
Pontos de vibração de cor e de luz, os jogos de planos dos Metaesquemas são convertidos, em Cabot, nas puras linhas que os separam, como se Roberto Cabot tivesse revigorado os espaços entre, o vazio, os intervalos, e os alçado à condição de plenitude. São essas linhas que vão desempenhar os momentos luminosos e assumir a cor, como se o ?fundo? de Oiticica se transformasse em elemento vivo, ato e estrutura da pintura.
A extensão e a duração que pulsam nas extremidades dos quadros de Cabot, um deles inclusive transbordando para o espaço da parede, reportam-se ao mesmo efeito multiplicador e incontido dos planos de Oiticica, à mesma malha flutuante, fazendo das obras Helioremix não somente uma homenagem ao mestre, como uma reinterpretação notável de sua ?diluição estrutural?. Ambos parecem preocupados em tornar a herança construtiva numa atividade espiritual complexa, em que a utopia técnica se curva ao imponderável, e a rigidez da geometria assume a elasticidade do tempo.
Ligia Canongia