Futebol de Salão: a coletiva

Cildo Meireles, Rubens Gerchman, François Morellet, Daniel Blaufuks, Raul Mourão, Lula Wanderley e Julio Leite

De 15 Jun a 15 Jul 2010

Pois bem, futebol de salão.

Pois bem que se pode ao bel prazer ligar três pontos sem conexão aparente e fazê-los coerentes por exercício de imaginação. Mas parece que a imaginação fala mais alto quando esses pontos apresentam alguma semelhança de família. É como se um nariz comum ou um par de olhos mais esbugalhados compartilhado entre duas entidades nos permitisse pela semelhança ? senão pelo estranhamento ? inventar uma voz que mesmo quando dissonante encontra motivos para falar.

Pois bem essa é uma exposição precipuamente de imaginação curatorial, ou seja, o seu significado depende de uma antecipação fisionômica do curador no sentido de ser capaz de dizer que em se deixando três pontos sozinhos no espaço eles se ligarão por simpatia. Nesse sentido a imaginação curatorial é projetista de um jeito vedado às obras sem essa intervenção. Pois bem que a imaginação curatorial ligou pontos muito assemelhados. Não é o caso de lembrar que estamos diante de jogos de futebol? Não é o caso de lembrar que os jogos de futebol são instituídos no compartilhamento de uma gramática?

Algo de muito atraente liga a rotação dos jogadores ao retângulo do campo e das áreas a correr por um objeto cujo movimento é ao mesmo tempo determinado e indeterminado. Algo nos jogos de futebol é atraente por uma opacidade constante do futuro previsível. Eis o que a imaginação curatorial teve que desafiar. Pois existe algo que o salão faz que não está presente no campo. O salão reduz o espaço e aumenta a velocidade. Se já não fosse suficiente lidar com a opacidade constante do futuro previsível a imaginação curatorial se coloca mais um desafio, pensá-la no salão. Com o efeito da velocidade bem aumentada os objetos precisam estabelecer aglutinação simpática ou serão incapazes de falar. E falam e como falam. Não o suficiente para a irritação das vuvuzelas. Mas existe alguma polifonia concertada. Há um conforto inexplorado em se dialogar com a imaginação curatorial, porque nela existe um teórico enunciador, mas ausente, que não se coloca pelo princípio de autoridade, mas que se dá à consistência, quando consistente.

Mas Blaufuks não se contenta com o tempo acelerado do espaço diminuído do futebol de salão, porque é para isso que a imaginação curatorial nos aponta, ele resolve diminuir um pouco mais, e nos coloca diante daquilo que d?além mar se chama de Matrecos, o salão é miniaturizado de modo expressivo, mas não é minimalista. Mas por que Blaufuks pratica essa crueldade? De nos retirar dos campos verdes, para os salões fechados, para nos colocar num tempo bastante acelerado das rotações da mesa? Porque ele deseja mostrar que também no território da aceleração se pode deixar que o tempo passe para frente e fazê-lo se aprofundar verticalmente. Não se trata de uma partida jogada na linearidade do tempo, mas na duração do tempo. Como se não tivéssemos de vencer, ou, no caso dos portugueses, de perder a partida, mas de escolher pelas suas ranhuras que não passam, ou seja, pelo efeito de oxidação das imagens.

Na minha infância era comum dizermos, na partida de matrecos, que era uma violação da regra (não com essas palavras) girar completamente o jogador, artifício que aumentava a intensidade do ?chute? da bolinha. Mas se compreendi bem a imaginação curatorial o deslize é sugerido. Pois bem, o vínculo entre Blaufuks e Morellet se dá por um descumprimento de regras. Ao se girar o jogador de Matrecos, estamos fora da duração, do tempo do gosto, e vamos para a linearidade, mas esta não se apresenta de modo evidente. Porque o círculo abstrato realizado pela circunferência rodada do jogador inviabiliza o jogo, mas também nos apresenta para objetos, que o são, enquanto tempo que passa por sobre as coisas que não se movem. Da esfera produzida pelo jogador girado, para além da regra, surge uma grande bola de metal que rivaliza com a trave e com a pequena área, de modo algum a bola poderá entrar no gol. Trata-se aqui dos efeitos praticados pela fotografia por sobre a escultura. Se a sugestão abstrata da fotografia não a faz deixar de durar no tempo, também a escultura não deixa de passar sem se mover, mas de alguma forma a presença contigua das duas, facilitada por um compartilhamento de semelhanças de família, permite ao curador compor uma modalidade de duração-que-passa-sem-se-mover. Algo como uma impregnação fotográfica da escultura.

Por fim, existe algo de bastante filosófico nessa imaginação curatorial que perscrutamos, e é a ela que digo. Se me dão, e o digo também como desafio aos que tentam não filosofar em arte, os traços escultóricos de Mourão, depois de me serem dadas as interrupções no tempo de Blaufuks e o avanço no tempo de Morellet, penso que existe uma forte inseparabilidade entre o pensamento de qualquer forma de vida e o estudo da composição. Pois bem, se temos os campos e as suas formas, por que não pensar nas linhas do campo? Por que não pensar na inscrição do preto sobre o branco com linhas? Por que não confundir essa ordem por alguma lógica oculta? Por que não esconder essa lógica como quem defende a própria vida? Esse é o desejo escondido por detrás da imaginação curatorial, em todo campo de futebol existe, sob a forma abstrata de um campo, um plano, que ao mesmo tempo em que é plano pictórico é plano de enunciação, por essa razão, é pelo traço que se pode falar alto, baixo, durar no tempo ou nele passar, mas é sempre, desde sempre, o plano, o campo, o plano que nos envolve com a vontade de ver instituir, um plano de escultura.

Cesar Kiraly