Dioramas e Muxarabiês

Luciano Figueiredo

De 10 Jul a 07 Ago 2004

Os ícones mais cultivados da cultura brasileira são carregados de afetos, sentimentos fortes, elogio do imediato, enfim, nos trópicos imperariam, soberanos, a emoção e um certo descontrole. Na arte, essa versão foi bem sintetizada, algumas vezes com inteligente ironia, em certas obras da chamada ?Geração 80?, que comemora os vinte anos de sua grande exposição inaugural. A contrapelo se desenvolve, desde os anos 50 do século passado, sob a égide das teses construtivistas, uma outra versão da cultura brasileira, cuja densidade, acumulada nas últimas cinco décadas, é incontestável. Nesta, a razão domina o processo de produção poética e provoca o elogio do projeto defronte ao império do fazer emocional. Para não cairmos num dualismo cômodo e simplista, seria necessária uma análise das conexões complexas que se desenvolvem entre as duas correntes quando os trabalhos se emancipam do plano puramente cultural e alcançam, de modo indubitável, o estatuto de obras de arte. Além disso, a inteligência poética das maiores expressões da cultura popular e mesmo do show business, no Brasil, contrariam essa imagem fuleira; ao contrário, sabendo ou não sabendo, vão muito mais numa direção construtiva do que para uma figuração neo-romântica de shopping center.

O trabalho de Luciano Figueiredo é francamente filiado ao construtivismo e sua elevada tradição gráfica. Essa escolha do artista se dá há mais de três décadas quando ele estabelece uma empatia com as pesquisas formais da literatura de Joyce, de Pound e, conseqüentemente, com a poesia concreta. Nessa mesma época inicia suas pesquisas gráficas, quando ainda residia em Londres, nos anos 70. A mancha gráfica da página do jornal ? as famílias de tipo e de escrita em diferentes alfabetos e ideogramas impressa nos mais diversos idiomas ? exerce um apelo estético que Luciano irá explorar de diversas formas. É bom recordar que essa opção de pesquisa formal ocorre à margem das tendências dominantes do período ? arte conceitual, land art, body art e outras ? o que o obriga a uma espécie de recuo de geração ao se identificar com os paradigmas estritamente construtivos de uma gramática visual cujos limites vinham sendo explorados, no Brasil, há mais de vinte anos. Trata-se de uma autêntica afinidade eletiva e não uma sôfrega atualização pelo viés da moda.

Há quem ainda pinte tomando corpos nus, montanhas ou árvores como modelos; nada mais legítimo, sobretudo quando atrás da paleta e dos pincéis há uma inteligência sensível capaz de reinventar esses corpos e paisagens. Talvez por isso, costuma-se pensar que o pintor construtivo dá as costas ao mundo e toma como modelo somente as entidades platônicas da geometria euclidiana. Se a pureza da forma geométrica não deixa de ser um valor a se levar em conta quando se toma a razão como condutora do processo de produção poética, é um engano pensar que o artista construtivo, no seu movimento de abstração, não interage com o mundo e não o toma como modelo. A pintura de Luciano Figueiredo é uma demonstração dessa capacidade de olhar o mundo, captar formas presentes no cotidiano, transformá-las numa operação poética de decantação de seus elementos mais saturados e devolvê-las aos nossos olhos numa nova ordem de planos e cores. Seus primeiros modelos foram as páginas de jornal e nada mais presente na vida urbana do que esses ícones da informação impressa. Da saturação gráfica da página coberta pela tipografia à limpeza da própria folha em branco foi um passo.

O ponto de partida de Luciano é um pensamento gráfico ao qual, sem nenhuma violência, será acrescentado um conhecimento pictórico. Mas este não obscurece aquele. A pintura não avança sobre a ordem gráfica, a ela se superpõe com um sábio uso da transparência, e desse modo convivem os dois universos num só mundo em estreita colaboração, sem tensões ou conflitos maiores. Recentemente, as camadas de tinta se esparramam líquidas, mas sem nenhum exagero, sem nenhuma vocação para o espetacular, apenas exercem, pela ação da gravidade, seu espalhar sobre as camadas superpostas e sem inibir a presença da ordem anterior. Nem mesmo o suporte é inteiramente mascarado pelo pintor; a madeira, sua textura, sua origem orgânica, comparecem como elementos do trabalho numa presença formal que tem o mesmo estatuto das camadas pictóricas. O mesmo ocorre com as páginas de jornal. Estas não concorrem nem rebaixam violentamente a construção. Trata-se de uma interação de ordem plástica. A ausência de oposições cromáticas fortes e esse universo de equilíbrio não-forçado - afinal há encontros e desencontros, formas que caem enquanto outras ascendem - dizem respeito a um mundo que ainda não existe, mas que nada impede que, num cálculo otimista das probabilidades ? o que não deixa de ser uma estatística que desafia a razão ?, venha a existir. Um mundo sem dramas e tensões no qual os conflitos são estritamente aqueles necessários para estabelecer as relações dos indivíduos que o habitam: por enquanto somente a memória dos retângulos e quadrados que um dia foram páginas de jornal.

Paulo Sergio Duarte