De 26 Mar a 11 Mai 2007
O artista não sossega ou quando o faz é carregando pedras. No presente caso, Fabio Cardoso abre um intervalo na produção de suas pinturas, telas quase sempre imensas e realizadas a partir de um processo onde as ações meticulosas e atentas entrelaçam-se com o acaso, para realizar aquarelas. O trabalho em escala menor e sobre papel é classicamente considerado o lugar onde a mente e a mão do artista descansam. Sem maiores exigências que não o transbordamento de idéias e motivos, o artista como que se desamarra. Mas há casos em que aquilo que no máximo se pretendia um laboratório, vira um fim em si mesmo. E o trabalho, de errância converte-se em estância; um lugar produtivo. Este, parece-me, é precisamente o caso da série 99 Portas.
De saída vale ressaltar a íntima relação entre essas aquarelas e as pinturas de Fabio Cardoso. Ambas, embora em graus diferentes de densidade, nascem da mesma materialidade líquida. Mas enquanto as pinturas lidam com sobreposições de tinta óleo diluída com aguarraz, um preparado tão cáustico que não se dá apenas sobre a superfície do tecido, mas que se infiltra em suas entranhas, às vezes trazendo à tona as marcas dos bastidores de madeira onde ele é retesado, suas aquarelas, invariavelmente pretas, acontecem pelas bordas, vão velando o papel mas deixando imaculado seu centro. A alvura do papel contrasta com o preto tanto quanto o gesto do artista, uma caligrafia concisa, contrasta com a pureza do campo que ele ataca.
Por que porta e por que 99 Portas? Porta, porque, como um dia propôs Marcel Duchamp, a obra de arte é uma passagem, uma prova cabal da porosidade, senão do espaço, do mundo mesmo. Aliás, como se sabe, a tradição da pintura ocidental remonta à idéia de janela, o efeito tromp l?oeil com a qual ela pretendia escamotear a presença da parede onde estava fixada. Nessa linha de raciocínio a porta é uma expansão do problema e alude a conexão entre o espaço onde estamos e o outro lado, além daquilo que se vê. A porta como possibilidade. Já o 99 corre por conta da lógica da variação, o exercício ensimesmado e obsessivo de tentar extrair a diferença da repetição. Os exemplos se sucedem e para não cansarmos o leitor bastaria lembrar de dois dos mais célebres: As variações Goldberg, de Bach, e os Exercícios de estilo, de Queneau. Um na música e outro na literatura. Por fim resta, a lembrança daqueles que defendem a idéia, de resto muito plausível, que os artistas vivem para contar uma coisa somente. Uma prova da inacessibilidade da perfeição, dirão os pessimistas; ou uma demonstração de que sempre se pode melhorar, dirão os do outro time. Mas talvez nem uma coisa nem outra. Talvez em cada gesto, na variação mínima entre um e outro, no esforço maior ou menor, nas sutis oscilações da gradação da tinta, é que o artista vai realizando a si mesmo.
Agnaldo Farias
_
Em polêmica exposição do acervo de arte contemporânea do Banco Itaú, atualmente no Itaú Cultural de São Paulo, o curador Teixeira Coelho e a cenógrafa Bia Lessa optaram por apresentar algumas pinturas no chão. Produzidas para serem penduradas na parede diante do espectador, as obras foram submetidas a uma torção problemática. Para além dos problemas arquitetônicos ? aquele labirinto é tudo, menos espaço expositivo ? esta opção parece defender um vale-tudo próprio ao pior niilismo pós-moderno. Para rejeitar esta idéia e mantermos uma resistência própria à pintura, devemos ir à exposição de Fabio Cardoso, 99 Portas.
A questão da morte da pintura não é de todo descabida, desde de que discutida a sério. Trata-se de saber se ela ainda é uma necessidade histórica ou apenas sobrevive como realidade institucional. Independentemente da demanda comercial, que pede sempre mais pintores, cabe a interrogação sobre a viabilidade do olhar e do tipo de experiência requeridos pela pintura. Refiro-me a uma densidade inerente ao acontecimento pictórico, que requer da percepção um tempo que não se deixa constituir frente à aceleração de nossos movimentos contemporâneos. O olho e o corpo estão sempre em estado de excitação, desacostumados ao parar e olhar próprios da pintura. Este tempo maturado do olhar remete ao engajamento corporal do pintor com seus materiais. Expô-la de qualquer jeito é dar a ela uma realidade artificial, desconsiderando sua capacidade de resistir ao fluxo delirante da imagem contemporânea. O tempo da pintura não é o tempo do espetáculo ? e é esta oposição que cabe discutir.
Esta série recente de aquarelas em preto-e-branco de Cardoso funciona como uma espécie de freio visual. Apesar de usarem o papel como suporte, estes trabalhos estão mais próximos da visualidade encarnada da pintura do que do traço projetivo do desenho. O procedimento do artista é simples: ele molha o papel e vem com a aquarela preta que escorre e ocupa o espaço. O grau de diluição e a quantidade de água utilizada vão produzindo efeitos de transparência, criando ?portas? ou clarões de luz.
Há dois movimentos concomitantes da percepção nesses trabalhos. Nas sequências com papéis menores, onde a pincelada é mais curta, predomina o ir e vir do conjunto para as partes individuais, do distanciamento para a intimidade. Cada aquarela vale por si e é parte de um todo. Já nas peças maiores, o conjunto se sobrepõe, e os papéis individuais são integrados ao conjunto. A caixa de acrílico utilizada para guardar os trabalhos ajuda na individualização e na apresentação, mas atrapalha o efeito de sucção das ?portas? sobre o olhar, na medida em que reflete luz e cria valores de superfície refratários à textura do papel e à transparência da aquarela.
Neste jogo entre a intimidade e a expansão do olhar, vem à tona o diálogo com dois artistas: Goeldi e Barnett Newman. Muito diferentes entre si, eles se encontram neste deslocamento da ?porta? como metáfora para a ?porta? como signo visual. Diante de cada peça individualizada, vemos surgirem as passagens solitárias, um universo expressivo de abandono que remete a Goeldi. Quando nos afastamos para olhar os papéis maiores, o respiro de luz ou a mancha luminosa passa a costurar o espaço, catalisando o olhar sem a separação dos planos e a criação de profundidade. Neste segundo caso, as brechas de luz que unificam a forma lembram Barnett Newman. As portas goeldianas trazem o humano, o mistério das passagens, o susto expressivo que desponta de pequenos detalhes visuais ? uma textura, uma transparência, uma luz, um espaço que se forma do nada. Os clarões, como em Newman, falam do mistério, do inominável, do silêncio. O que interessa à pintura não é o que se mostra como coisa real lá fora, mas a sua capacidade de se auto-sustentar enquanto exercício perceptivo.
Através da simplicidade expressiva de Cardoso, somos obrigados a olhar as telas sem expectativas formadas e deixar o fato pictórico conduzir a visão. O espectador se vê desamparado e se obriga a exercer plenamente sua capacidade perceptiva no que ela tem de mais estiimulante,: o formar-se do sentido. O silêncio e a incomunicabilidade estão sempre à espreita, mas o risco de nada mostrar é a contrapartida a não se deixar vencer pela banalização da imagem.
Luiz Camillo Osorio